27 de junho de 2010

Desbocada


O mundo dá sinais e avisos. Às vezes eles são nítidos como água de cachoeira da Chapada, às vezes turvos como a água do Tietê. Ou às vezes é a nossa percepção que anda meio capenga, meio turva, e não vê, não enxerga, não percebe que, apesar de toda a dificuldade existente nesta vida, o universo às vezes conspira a nosso favor. O que aconteceu comigo esta semana abriu meus olhos para o fato de que meu corpo é frágil, que a vida é curta e que quem fica parado é poste.
Segunda-feira eu voltava alegremente para casa, eu e Magali, velozes pelas ruas de Brasília, que apesar de largas às vezes não parecem ser suficientes para a ânsia dos motoristas de carros da cidade (estou tomando uma birra de carros que “valha-me deus, nossa senhora”!). Então, a certa altura do caminho, no tumultuado das rotatórias, eis que uma velhinha em seu carrinho chique e prateado, despretensiosa e levianamente faz a curva à esquerda sem sinalizar. Como infelizmente eu há muito tempo abandonei minhas pretensões de ser adivinha, a Magali deu de cara com a porta, e eu de cara com o asfalto. Meu canino perfurou meu lábio de dentro pra fora. Levantei do chão. Estava viva. As gotas de sangue pingavam timidamente, como que para me avisar que eu estava ferida. A dor deu lugar à revolta: pelo excesso de carros, pela falta de bicicletas e ciclofaixas, pela falta de cuidado das pessoas, pela fragilidade exposta do corpo humano, que passa despercebida por quem dirige a máquina. Levantei-me furiosa. A dor passou. Eu bradei toda a minha raiva contra os carros, toda a minha indignação. As pessoas me olhavam pasmas. Eu me sentia impotente. Onde estão as ciclofaixas? Por que vocês acham que a rua é só para os carros? A rua é para todos! A rua é para todos!
Senti alguém segurar meu braço. Estourei em soluços comovida pelo meu próprio discurso. Segurava a Magali com as duas mãos, tão ensandecida que pensava em montar em cima dela e ir embora pedalando. Retirei-a do local do acidente. Ficamos eu e ela juntas no meio-fio. Olhava pra velhota distraída e sentia um misto de raiva e pena. O sangue pingava, eu chorava e não sabia o que fazer. Magali com a roda torta não podia me ajudar a ir embora. As pessoas foram surgindo na rua. Dentro da mochila, minha blusa branca onde um dia pintei um símbolo de bicicleta. Por fora da mochila, os dizeres “trânsito consciente”. Ironias do destino. Ganhei essa mochila há duas semanas, durante um encontro nacional promovido pelo Ministério das Cidades (Programa Bicicleta Brasil). Liguei pra minha mãe. O lábio rasgado, preso no dente canino, não me permitia fazer compreender. Ligaram pros bombeiros. Falaram com a minha mãe. Uma médica apareceu. Ela não parava de falar. A velha o tempo todo com as mãos juntas, parecia que rezava. Eu me desculpei por ter gritado com ela. Depois me arrependi um pouco, pois ela me olhou de um jeito, fria, não moveu um músculo da face, não esboçou reação. Decerto achava que não fizera nada de errado. E eu com a boca estourada.
Os bombeiros foram legais. A polícia chegou, pois estava de passagem. Não falei com eles, não falei com ninguém. Agora a dor não me permitia maiores interações. Comecei a ficar com medo. Um medo surdo. Milhares de pessoas pareciam estar ao meu redor. Eles só queriam me ajudar. Relembrando disso sinto-me novamente triste. Eu penso na velha com as mãos juntas, penso no homem com a Fiorino que se ofereceu pra levar a bicicleta, que me trouxe água, que pegou na minha mão e disse pra eu ficar calma. Eu penso em todas as pessoas que morrem por tão pouco, por causa do egoísmo besta que cega o coração de quem tem nos pés e nas mãos não um veículo, mas uma máquina que pode matar e lesar os outros. Eu lembro e choro, choro porque o mundo não precisa de muito pra ser um lugar melhor, mas precisa de mais pessoas boas, que queiram. E eu choro agora porque tenho pena do meu país, pena das pessoas pobres que só tem a bicicleta pra se locomover e correm tantos riscos, e são xingadas e mal-tratadas no trânsito. Choro de pena das pessoas ricas que, diante da pequenez de suas vidas, reafirmam sua importância quando entram no seu carro, sem distinguir que uma pessoa em uma bicicleta é – repito – apenas uma pessoa montada em uma bicicleta. Se ela cair, ela vai se machucar. Se você não respeitar sua ínfima condição humana, sua fragilidade, ela poderá morrer, ela poderá sofrer, e você terá sangue no pneu do seu carro, no volante, no câmbio, no retrovisor.
Eu estou viva, e estou bem. Tantas pessoas me acolheram, me ajudaram, me deram esse amor que elas têm dentro de si, e que às vezes não tem nem com quem repartir. O homem da Fiorino, o bombeiro. Pessoas que querem fazer o bem. A vocês: muito obrigada. A todos os que lutam pelas bicicletas, pelos animais, pelas árvores, pela água, pelas crianças, por um mundo onde não seja preciso bombas atômicas, nem armas nucleares, nem tropas de choque: muito, muito obrigada.

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