6 de fevereiro de 2014

Peixe Morta

O ser humano pode ser tão fraco como uma mosca ou estúpido como um peixe. Às vezes, um ou outro se sobressai e abre um pequeno furo na mente das pessoas, por onde passa um pouco de ar ou um feixe de luz. A esses chamam de mentores, mestres, professores, pensadores - homens e mulheres. Durante a história da humanidade sempre vamos encontrar estas personagens que conduzem seus contemporâneos – e muitas vezes suas lições perduram para além de sua morte física. Em suas palavras e ensinamentos, os condutores da humanidade resistem e sobrevivem.
"Another Dead Fish". Drawing by Ribbitty Rabbitty
Na época em que não havia tantos meios de comunicação, o envio de cartas, postais e telegramas significava mais do que se comunicar – era de fato uma forma de se relacionar verdadeiramente com as pessoas (vide “Cartas a Théo”). As cartas eram cuidadosamente guardadas e de quando em quando relidas e relembradas. Nada nos impede de hoje em dia fazermos o mesmo com os nossos… e-mails?, mas só quem possui uma caixa de sapatos cheia de memórias eternizadas em finos papéis de carta e grossos papéis-cartão, dentro de envelopes rasgados e selados, sabe do que estou falando. Não é difícil perceber a diferença entre um punhado de cartas e 15 gigabites de informações desencontradas e divididas em vários endereços de e-mails, perfis da sociedade virtual e afins.
Penso na lei da oferta e da procura, tão cara ao capitalismo, e que é a medida do valor das coisas. A grande quantidade de informação de que dispomos nos torna negligentes com relação a ela. Ao mesmo tempo que nos angustiamos ao percebemos o quanto há para se conhecer, saber e aprender, nos conformamos com a postergação infinita que cabe dentro de um marcador de páginas favoritas, ao qual sempre podemos recorrer. Sobra um pouco de angústia ou de ansiedade.
Se eu fosse me analisar, diria que sou muito mais apegada ao passado e à memória do que poderia ser considerado inteligente. Sim, porque meu apego me faz sofrer quando penso nas coisas – ou melhor, nos sentimentos ligados às coisas – que eu perdi, seja como tenha sido. Por outro lado, o que mantém esta minha forma de ser é justamente o prazer que existe quando manuseio os traços do meu passado, das minhas memórias – não é, afinal, isso que verdadeiramente importa? Bem, há os que discordarão, fortuitamente. São pessoas que vivem mais ligadas ao presente, que sabem deixar o passado pra lá e viver o agora e o amanhã. Possuem essa característica que admiro e às vezes até invejo, e que já busquei em mim. Mas eu não sou assim, desprendida. Sou agarrada. A memória é o meu chão.
De uns tempos pra cá pessoas que haviam absolutamente sumido da minha vida voltaram a fazer parte dela de uma maneira muito presente, através da internet. De fato, com algumas, foi possível manter, ou estabelecer, ou reestabelecer, um certo contato digno de notação. Esses posso contar nos dedos de uma das mãos. Por algum motivo, a comunicação à distância com essas pessoas nos possibilitou nos relacionarmos verdadeiramente – ou melhor, suficientemente, na medida em que é possível se relacionar da forma como temos feito desde que as redes sociais surgiram, lá no início dos anos 2000.
Hoje já existem outras mil formas de nos comunicarmos via internet, e as pessoas vão aos poucos conhecendo e fazendo uso dessas ferramentas como melhor lhes aprouver. As pessoas se comunicam, se falam, contam suas histórias, partilham seus segredos. Uns se expõem a um nível que beira o perigo ou o ridículo, outros se preservam, observando e julgando. Mas acho que poucos se relacionam. Manter amizades de forma mais virtual do que presencial nos empobrece de várias formas, e isso porque acreditamos que escrever nossos pensamentos imediatos ou estar sempre a declarar alguma coisa nos torna mais próximos dos outros. As pessoas pensam que se comunicar é se pronunciar, mas com a escrita no computador perdemos o olhar, o toque, o cheiro, o som do tom de voz, o gaguejo, a dúvida, o sorriso no canto escondido, a mão nervosa no cabelo. Não ouvimos o timbre nem percebemos o drama. Todos falam ao mesmo tempo, ninguém ouve o que o outro tem a dizer. Se lhe fazem uma pergunta, será que é por que se importam ou por que estão apenas curiosos? Será que buscam fazer uma comparação para averiguar a situação da própria vida relativamente à dos outros?
Todos fazem isso, de uma maneira ou de outra. Mas a realidade virtual é bem mais nebulosa: ela é construída, pensada, mesmo que de forma pueril, mesmo que com indiretas ou frases de efeito, mesmo que com desabafos raivosos. Mostramos aquilo que queremos mostrar, seja o que for aquilo que nos impulsiona: promoção pessoal ou desamor próprio. Cada um tem a neurose que lhe cabe. Não é que alguém nos perguntou algo. Aquele que pergunta "Em que você está pensando?" não é um alguém que se importa: é uma máquina que lhe dá uma desculpa para escrever.
(Pelo menos as pessoas têm escrito mais. E lido mais. Não é?)
Não sei.
As pessoas vão a psicólogos, psiquiatras e terapeutas porque precisam antes falar ou serem ouvidas? 
Necessitamos da compreensão dos que nos são caros. Mas, quem de fato está disposto a ouvir, ou a ler o que se tem a dizer, quando há tanto para ler e ouvir e ver e perceber e compreender? A urgência em falar acomete a todos de uma vez: vêm as opiniões e os conselhos que você não pediu pra receber. As pessoas lhe perguntam, mas, no fundo, elas não querem saber verdadeiramente. Não lhes interessa de fato que você fale o que viveu, pensou e sentiu, a aproximação não é genuína quando há simplesmente uma vontade de saciar aquele algo mal resolvido que existe lá dentro de não sei onde.
As pessoas têm pagado seus terapeutas por que lhes falta quem lhes ouça de olhos fechados, quem se interesse. Talvez existam uma ou duas pessoas em todo o mundo com quem posso realmente conversar com mais frequência sobre meus pensamentos e reflexões. E eu entendo isso. Primeiramente porque não sou assim uma pessoa tão interessante, que tem tanto para ensinar, como os sujeitos do primeiro parágrafo. Não é fácil ser amigo de alguém, é preciso que haja um desinteresse egoísta muito grande para que isso aconteça de forma válida. E as amizades também têm suas fases.
Talvez a grande diferença entre os casais e os amigos seja mesmo essa: quando estamos tendo um problema com um amigo ou amiga, podemos nos afastar temporariamente sem maiores problemas ou dramas. Já os casais geralmente vivem as tensões de maneira mais catastrófica – dá certo ou não dá? Porque se for, tem que ser agora. E tem que dar certo sempre. Se uma pessoa fica casada com a outra por 15 anos, mas se separam, muitos vão lhe dizer que é uma pena que não tenha dado certo. Quinze anos juntos e não deu certo? É uma perspectiva que desmerece toda uma história e um passado. Digamos que deu certo por 13, 14 anos, e que lá pelas tantas, já não deu mais. Se isso não for considerado, a vida perde o pouco do sentido que tem.
Que triste ilusão a hipocrisia nos fornece dos relacionamentos humanos. Fica a pergunta a martelar: o que são amizades “de verdade”? O que é um relacionamento “de verdade”? O que é um interesse “de verdade”? Espero viver o suficiente para um dia tentar responder a isso.


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