29 de Maio de 2012
Na estrada-de-ferro
Depois de uma noite de muita apreensão e dúvida, ocasionadas pela inspiração súbita que me acometeu e que me fez trabalhar toda a madrugada na atualização do meu portfólio, finalmente estou mais descansada em relação àquilo que me afligia.
Esta «condição estrangeira» momentânea a qual experiencio em Portugal obriga-me a tomar providências burocráticas de quando em quando. Como no ano passado fui relapsa, para não dizer completamente irresponsável, relativamente à renovação do meu Título de Residência Temporária, tive que pedir novo visto enquanto estava no Brasil. Da mesma maneira, fui relapsa e deixei tudo para o último momento. Além do dinheiro que poderia ter poupado - quase 300 reais - fazer novo visto implica em um bocado de trabalho (menos do que foi na primeira vez, com certeza, pois já se sabe o caminho das pedras). Para piorar, eu estava com a passagem de avião para Maceió já marcada (em verdade, eu ia mesmo para Olinda), e sem a certeza de ser atendida a tempo no consulado português.
Por isso (e por outro tanto) não posso reclamar da minha sorte. Salva pelo gongo, consegui o visto a tempo de embarcar de volta para Lisboa.
Agora, refletindo enquanto tento escrever embalada pelo balanço do comboio, penso que havia uma parte muito grande de mim que não queria voltar para Portugal, após minha longa passagem de três meses pelo Brasil, entre novembro e janeiro. Ou então, sou minha própria «Lei de Murphy», que se boicota a fim de provar sei lá o quê.
***
(a fim de --» a propósito de)
(afim --» afinidade)
***
Mas a minha decepção com o curso de Cinema da UBI, especialmente no que diz respeito à inépcia da minha turma e na distância entre os estudantes entre si, é compensada de tão inúmeras maneiras que descrevê-las faria deste pequeno texto um compêndio. De fato, estou felicíssima por poder estar na Europa, morando com a pessoa que amo, estudando o que gosto, e realizando um sonho de viajar pelo velho continente.
Fosse eu menos pão-dura, ou menos apegada, ou menos taurina, não sofreria tanto pelo dinheiro que julgo mal gasto no curso da UBI. Hoje penso que poderia ter tentado ir para a Alemanha, mas quando reflito melhor, concluo que estou a desejar uma coisa que à época eu não teria feito, e acabaria por não viajar coisa nenhuma.
Isso me faz pensar em como se deu a possibilidade de eu estar aqui: vim com o dinheiro recebido pela venda de um lote, herança do meu bisavô Teotônio Nunes, pai de minha avó Ení. Ele era taurino também, se não me engano, e grande parte dos bens que conquistou gastou-os viajando pelo mundo. Então acredito que não haveria maneira melhor de gastar aquilo que ele me deu.
***
E após essa longa digressão retorno enfim ao que eu queria inicialmente dizer. Que vim hoje à Covilhã, no autocarro das 9h50, seguindo da Estação Sete Rios (linha azul, Jd. Zoológico), muito apertadinha mesmo sentada no melhor lugar. Que vim para buscar um documento (ou dois) que comprovassem que sou aluna da UBI, matriculada e com as propinas pagas.
A grande questão é que ontem, dia do aniversário de 22 anos do meu irmão Virgílio (que também está fora do Brasil, em Perth, na Austrália), recebi um e-mail do profº Nogueira sobre um estágio na Rosa Filmes, produtora de cinema de Lisboa. Foi por isso que me inspirei para atualizar meu portfólio, e o que parecia ser uma tarefa simples e rápida acabou por se mostrar demorada. Não que isso seja ruim, pois significa, na verdade, que eu fizera muitos trabalhos (1 cineclube, 3 festivais de cinema e 1 curta-metragem). Eu já havia passado a tarde toda a resolver uma pendência com relação à minha videoarte «Solilóquio para Agonias Distendidas», que era a de inserir os nomes das músicas utilizadas no filme aos créditos finais, retirar a UBI como «produtora» do fime e colocar a «Conosco - Cinema & Arte» no lugar, e, por fim, as legendas, em inglês e português (aliás, essa urgência em finalizar propriamente o filme deveu-se a um outro e-mail do profº Nogueira sobre um festival de videoarte que acontece em dezembro, em Lisboa).
Acredito que eu estava mesmo tomada por um espírito de urgência em resolver tais pendências para então poder focar na pendência-mor, que é a finalização do documentário «Filmes de Papel», meu projeto final na UBI.
***
(Vista maravilhosa do rio Tejo. Lembro de uma história linda com minha mãe das viagens de ida-e-volta Lisboa-Covilhã, liguei para ela de dentro do comboio e pedi para ela ler para mim a poesia do Fernando Pessoa sobre o rio Tejo. Foi um momento mágico e lindo entre nós duas, que não nós víamos há quase 1 ano. Choramos as duas ao telefone. Agora me vem à mente aquela música do Chico Buarque, «Tanto Mar». Tenho-a no mp3. Ouço-a agora. Foi para este meu momento que ele fez esta música?
«Tanto Mar», de Chico Buarque
Envio uma mensagem ao celular de minha mãe, ao que ela me responde: «Te amo». Ainda bem que também tenho no mp3 o «Fado Tropical»).
«Fado Tropical», de Chico Buarque e Ruy Guerra, da peça «Calabar»
***
E mesmo completamente esgotada (porém, muito satisfeita) da intensa madrugada, e apesar de ter quase desistido de viajar, apenas adiei a viagem das 8h pela das 9h50. Cheguei na Covilhã e logo apanhei o pequeno autocarro (uma van), que me deixou à porta da UBI. Senti o cheiro e a brisa fresca da cidade, logo após de ter desfrutado da gentileza comovente do povo da cidade, dos velhinhos sorridentes e prestativos. Então percebi que minha saudade era muito maior do que eu supunha, e uma lágrima de felicidade melodramaticamente eu chorei.
(E agora, «Catavento», interpretado por Maysa em 1969, mais uma música sobre distância, saudade e mar).
Maysa canta «Catavento»
E eu voltei à Covilhã para poder permanecer, e encontrei pessoas boas que me ajudaram e foram gentis, e só posso pensar que tenho tanta sorte por poder reconhecer nisto o que afinal é a felicidade. A gentileza, a solidariedade, a amizade, um «eu te amo», um sorriso e uma conversa fiada. O Tejo. As músicas e a poesia de Pessoa («porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia»). Porque o Tejo se liga ao oceano Atlântico, e este vai até o Brasil. Então eu me conecto com a minha saudade pela água, pelo vento, pelo pensamento. É como no curta «Noite de Sexta, Manhã de Sábado», do Kléber Mendonça Filho, cuja história contei para minha mãe e ela chorou sem ter visto o filme, e depois chorou novamente porque há uns dias ela finalmente pode vê-lo.
***
Assim que saí dos Serviços Acadêmicos, com lenço e documento, fui diretamente tomar um café expresso no Oitavo's, como eu sempre fazia. Então liguei para o meu amigo alentejano Kinito, como eu sempre fazia. E ele também estava na Covilhã, por um mero acaso do destino, posto que ele também já não mora mais lá. Há um ano que não o via, e ele foi imediatamente encontrar-se comigo.
Enquanto ele devolvia os equipamentos de filmagem que usou para «uma curta verdadeiramente alentejana», eu fui ao Jardim Público, estendi meu lenço na grama e almocei o que havia preparado especialmente para a viagem, às 7h da manhã. Acabei descobrindo um velho isqueiro que dei para o Kinito. Ele ainda se parece muito com o meu primo Pedro.
Fomos ao R&F Lanches, do seu António, cujas deliciosas bifanas me salvaram inúmeras vezes da fome atroz, e quando vimos que já eram 4 e 20 da tarde, fomos à casa de um colega do Kinito para eu procurar na internet os horários dos autocarros.
***
Mas a história não acaba aqui. Felizmente, não havia mais autocarros para o dia de hoje. Então, apesar de ser mais caro, resolvi pegar o comboio, pois senti que era melhor voltar a Lisboa do que passar a noite na Covilhã (afinal, eu deixei a roupa pendurada no estendal).
Cheguei 1 hora antes da partida do comboio, às 17h35, e por isso consegui uma ótima poltrona, à mesa, na direção do comboio, à janela. E por isso me pus a escrever, e por isso vi o rio, e por isso ouço o Chico. Hoje foi um ótimo dia. E, «amanhã vai ser outro dia».
«Apesar de Você», de Chico Buarque
P.S. 1: Hoje é dia 29 de maio. Faltam 10 meses e 29 dias para meu aniversário de 29 anos.
P.S. 2: O meu atual marcador de páginas é ilustrado pela foto de uma ciclovia, por sua vez «ilustrada» por trechos, justamente, da poesia do Pessoa sobre o Tejo, a mesma que há cerca de um ano minha mãe leu, lá do Brasil, para mim.
- O Tejo
- O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,
Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia
Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.
O Tejo tem grandes navios
E navega nele ainda,
Para aqueles que vêem em tudo o que lá não está,
A memória das naus.
O Tejo desce de Espanha
E o Tejo entra no mar em Portugal.
Toda a gente sabe isso.
Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeia
E para onde ele vai
E donde ele vem.
E por isso porque pertence a menos gente,
É mais livre e maior o rio da minha aldeia.
Pelo Tejo vai-se para o Mundo.
Para além do Tejo há a América
E a fortuna daqueles que a encontram.
Ninguém nunca pensou no que há para além
Do rio da minha aldeia.
O rio da minha aldeia não faz pensar em nada.
Quem está ao pé dele está só ao pé dele.
Alberto Caeiro
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Obrigada por comentar!