23 de setembro de 2012

Ano do Brasil em Portugal (e vice-versa)

Eu não ia dizer nada, mas não consigo tirar isso da minha cabeça, nem tirar esse aperto do peito, então eu vou ter que escrever um pouco, porque eu preciso desabafar.

Começou ontem, oficialmente, o Ano do Brasil em Portugal. Fizeram lá no Terreiro do Paço, se não me engano, umas cenas comemorativas, e coisa e tal. Ontem também foi o dia do Equinócio - começa a primavera no hemisfério sul, e aqui no norte, o outono. Outra coisa importante ontem foi o aniversário da minha mãe, para quem comprei girassóis, assim mesmo à distância, «with a little help from a (cousin) friend». Também foi aniversário de um amigo meu ontem, natural do Porto. Ele dá aulas na Covilhã, e depois de ter passado uns filmes num projeto que ele criou lá na cidade, nós fomos ficando amigos. Em agosto, ele se mudou pra Lisboa, e foi morar numa república de amigos meus, o que me deixou muito feliz, porque agora ele é amigo dos meus amigos também.

Esta é uma república de estudantes, como são quase todas as repúblicas, acho eu. Por lá já passaram brasileiros, italianos, finlandeses, romenos, mas nunca antes tinha lá morado um português. Ele é o primeiro, e foi indicado por mim,que por acaso do destino, nasci no Brasil, sou brasileira. Ontem de manhã recebi uma mensagem desse meu amigo portense, me convidado para seu jantar de aniversário. Cheguei um pouco atrasada, porque fiquei no skype com minha mãe e minhas primas, e meu sobrinho-primo que nasceu há 17 dias. O jantar ainda não estava servido. Estavam lá minha amiga querida da Finlândia - uma das pessoas mais doces e gentis que já conheci - um casal de amigos dela, também da Finlândia, a madrinha do aniversariante, e um casal de amigos dele. Mais tarde, chegou mais um outro casal de amigos. Os rapazes eram naturais da Covilhã, onde eu morei e estudei por 6 meses.

Foi tudo muito bom, estava um clima muito legal no jantar, os aperitivos fartos e muito bem-feitos, conversas amenas, uma ou outra piada de descontração, etc. Fomos, eu e os finlandeses, ao ex-quarto do italiano que recém-partiu de volta pra Milão, com o fim do semestre escolar. Ficamos lá, fumando e falando de vegetarianismo e islamismo, dois assuntos muito polêmicos, rs rs. Quando voltamos pra cozinha, estavam lá os casais contando histórias da Covilhã.

A Covilhã é uma cidade muito pequena, que quase não se sobressai, e apenas tomou mais atenção do povo porque há 26 anos existe lá uma universidade pública, a UBI. Como todas as cidades pequenas, não acontece muita coisa por lá; as pessoas são, em geral, mais conservadoras tanto política como moralmente, e, como toda cidade do interior, pela falta de assunto, a vida alheia é a coisa mais interessante que pode haver. Estavam lá os dois rapazes da Covilhã falando da vida alheia, comentando que fulano saiu do armário, que o outro bebeu demais, que não viam a Fulana Cicrana há não sei quanto tempo, etc. As mulheres quase não falavam, enquanto que seus companheiros fofocavam alegremente. Pessoalmente, prefiro temas mais controversos, e que não envolvam a sexualidade alheia, que isso não é da minha conta. 

Por essa razão, o jantar estava basicamente dividido em dois grupos: o dos lusitanos, e o dos estrangeiros. No meio, o aniversariante, que ora conversava com um grupo, ora conversava com o outro. Lá pela meia-noite, senti muita vontade de ir embora, mas acabei ficando (o que me fez arrepender amargamente depois). Nessa altura, os lusitanos estavam sentados perto da janela, e nós perto da porta. Cada qual no seu assunto, cada qual na sua conversa. Eles então começaram a falar sobre o cinema brasileiro. Ouvia palavras esparsas. Um dos rapazes olhou pra trás, para ver se eu estava reparando na conversa deles. Notei o movimento, e olhei pra trás. Ele virou de costas. E assim foi. Do cinema pra cultura brasileira, foi um pulo. Então começaram a falar sobre a mulher brasileira. E sobre o homem. E sobre como as mulheres são vaidosas, oferecidas e que agarram os homens sem a menor vergonha. E como os homens são rudes e  mal-educados e agarram as mulheres. E como TODOS os brasileiros são assim-assim-assado. Brasileiros e brasileiras, frisou uma das raparigas. E que eles não têm educação. E mais uma série de ofensas ao povo brasileiro em geral, tomando muito cuidado de falar em uma altura ideal para que eu escutasse bem. De vez em quando, olhavam para trás para se certificar das minhas reações.

Agora, é a parte mais difícil, que é a de traduzir tudo que se passou dentro de mim, durante essa uma hora em que eles ficaram falando do alto de sua propriedade portuguesa como turistas em Salvador e no Rio de Janeiro, sobre a selvagem cultura brasileira. Primeiro, fiquei surpresa com a tranquilidade com que ofendiam o povo brasileiro na minha presença. Como bem disse o Ariano Suassuna, falar mal de uma pessoa na cara dela é muita falta de educação. Não estávamos num bar - estávamos na casa de um amigo em comum, no seu aniversário, e eu era tão convidada quanto eles. Fui ficando com antipatia daquele bando de provincianos. Ainda não compreendo como o meu amigo tem amizade com um povo com a cabeça tão pequena.

O que me dá mais raiva, na verdade, é como atitudes racistas como essas infectam meu estado de espírito quase como uma doença na alma. Ainda estou, como é óbvio, muito perturbada com a atitude deles. O casal de finlandeses anunciou sua partida. Eu talvez iria dormir lá, mas isso significava ter que continuar ali ouvindo ofensas contra o Brasil. Então fui embora também. No caminho, fui pega pela maior tempestade que já enfrentei, fiquei completamente encharcada, andei que nem uma condenada, e por pouco não fiquei doente. Dormi mal, acordei mal-humorada e com ressentimentos de todos os portugueses do mundo. É isso que me deixa mais chateada - como o ranço negativo de algumas pessoas faz com que eu sinta raiva de tudo, que me arrependa de ter vindo pra cá, que fique eu mesma com pensamento racistas - todos os portugueses são uns infelizes, mal-humorados, mal-educados, racistas e invejosos, sem amor-próprio, etc. Que raiva por me deixar contaminar por esses imbecis. Que raiva por não ter feito nada - mas, fazer o que? Bater boca com gente ignorante não adianta muita coisa. Se eles não têm educação, nem consideração pelo próprio amigo aniversariante, deliberadamente ofendendo uma de suas convidadas, eu é que ia não descer ao nível deles, e estragar o jantar para todo mundo.

E não deixa de ser notável que nesta república, que sempre abrigou estrangeiros, eu nunca tenha passado nenhum momento constrangedor por ser da nacionalidade que sou, muito pelo contrário. Sempre fui muito bem-recebida por lá, conheci pessoas de vários lugares do mundo neste apartamento, todos sempre muito gentis uns com os outros, e os habitantes da casa sempre muito contentes desse espaço multicultural. É uma pena que isso tenha mudado justamente com a presença dos portugueses.

Para não me deixar afetar pelo racismo dessas pessoas, eu faço uma lista mental das boas pessoas que eu conheci aqui, com quem fiz amizade, mesmo que passageiras - eu me esforço para lembrar daqueles portugueses que foram gentis comigo na loja, na rua, etc. Lembro do Fernando Pessoa e do José Saramago. Tento me lembrar das coisas bonitas de Portugal, e dos momentos felizes que eu passei aqui. Eu não quero reforçar os estereótipos, não quero agir nem pensar como essas pessoas.

Então eu me deparei com dois trabalhos científicos sobre o racismo em Portugal - são enormes, vai demorar um pouco até que eu possa ler. Num desses trabalhos, já nas primeiras páginas, encontro um link: «Um exemplo hilariante de jogo com os lugares-comuns da comunicação social e com os estereótipos sobre os muçulmanos resultantes do desconhecimento é o sketch do Gato Fedorento».


Então esta é a minha vingancinha contra os racistinhas de ontem à noite, este vídeo que ridiculariza o tipo racista, ignorante e inútil que infelizmente existe em qualquer lugar do mundo. O engraçado mesmo é como o preconceito que existe aqui contra os árabes e outros povos do Oriente Médio me leva a crer que o pessoal não tem espelho em casa, porque no sul de Portugal o que tem de gente com cara de árabe, com os olhos grandes, os cabelos bem pretos e grossos, a barba cerrada, a pele morena, o nariz grande... mas eles são muito ignorantes para saber que tais características físicas vêm do sangue dos mouros que invadiram Portugal no século 14. Eles têm preconceitos contra si próprios. Que falta faz uma boa educação!

Seguem os links dessas duas pesquisas sobre o racismo em Portugal.


Um comentário:

  1. helen6:52 PM

    muito bem, ligeireza, muito bem! contra esses racismos cotidianos, uma pitada de humor sarcástico eh a melhor saída!

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